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Diferente do que mostra história, Seleção evita aceitar envolvimento com política

 

por Nuno Krause

Diferente do que mostra história, Seleção evita aceitar envolvimento com política

"É importante frisar que em nenhum momento quisemos tornar essa discussão política", diz o manifesto da Seleção Brasileira de futebol masculino em relação à realização da Copa América no Brasil. O "capitão" do time nacional, Marquinhos, proclamou, em entrevista coletiva: "Se alguém quiser se posicionar politicamente, que faça em casa, em seu momento pessoal, não com a camisa da Seleção".

 

A polêmica começou quando a Conmebol, entidade máxima do futebol sul-americano, anunciou que o torneio em 2021 ocorreria no país com mais mortos por Covid-19 (mais de 477 mil, até o momento) na América do Sul. Isso porque os dois países-sedes originais, Argentina e Colômbia, desistiram do fardo, por conta de questões sanitárias e políticas, respectivamente. O posicionamento da equipe comandado por Tite pareceu, inicialmente, ser de revolta, e houve até a especulação de que o país pentacampeão do mundo não participaria da Copa América. Nesta terça-feira (8), a carta oficial desmentiu essa informação. 

 

"Somos um grupo coeso, porém com ideias distintas. Por diversas razões, sejam elas humanitárias ou de cunho profissional, estamos insatisfeitos com a condução da Copa América pela Conmebol, fosse ela sediada tardiamente no Chile ou no Brasil. (...) Por fim, lembramos que somos trabalhadores, profissionais do futebol. Temos uma missão a cumprir com a histórica camisa verde amarela pentacampeã do mundo. Somos contra a organização da Copa América, mas nunca diremos não à Seleção Brasileira", diz um trecho do comunicado (saiba mais aqui). 

 

Tanto o manifesto quanto a fase dita por Marquinhos evidenciam algo que já era suspeito em relação a essa geração de jogadores: a falta de comprometimento político. No entanto, a própria história mostra que futebol e política nunca estiveram de fato afastados.

 

A ITÁLIA DE POZZO 

Sob o comando de um dos técnicos mais inovadores da época, Vittorio Pozzo, a Itália poderia ter feito belas Copas do Mundo em 1934 e em 1938. O comandante estava na Azurra desde 1929, e foi responsável por implementar a formação 2-3-2-3, conhecida como "W-W", na seleção. A possibilidade de jogar em casa a Copa de 1934 colocava a equipe como uma das favoritas ao título. Especialmente porque o "Wunderteam" da Áustria, principal time da época, já não vivia seu melhor momento.

 

Todavia, não foi o bom futebol que fez a Itália campeã. O ditador fascista Benito Mussolini, após investir muito na construção de estruturas para receber a competição, praticamente ordenou que a Azurra levantasse a taça daquele ano. O que se viu em campo foi um vexame esportivo. Treinada de forma quase militar por Pozzo - apesar de não se ter certeza sobre a relação do técnico com o fascismo -, a equipe jogou de forma suja.

 

O livro "A Pirâmide Invertida - A histórida da tática no futebol", de Jonathan Wilson, traz que três ou quatro jogadores espanhóis precisaram deixar o primeiro jogo das quartas de final, contra a Itália, por causa de entradas duras dos adversários. Na partida de desempate, uma cabeçada do centroavante Giuseppe Meazza contra uma Espanha já desfacelada garantiu a vaga do time de Pozzo na semifinal.

 

As interferências da arbitragem nesta Copa também são apontadas como fator de influência de Mussolini na competição, já que dois gols espanhóis legitimos foram anulados naquele segundo confronto. A Itália ainda passou pela Áustria, na semifinal, tirando o melhor jogador austríaco, Matthias Sindelar, do jogo, e pela Tchecoslováquia, na final, para garantir o tão desejado título mundial.

 

Na Copa de 1938, na França, também conquistada pela Itália, o principal símbolo da influência fascista na seleção de Pozzo foi a utilização de camisas pretas contra a anfitriã, nas quartas de final. O uniforme fazia alusão aos "Camisas Negras", nome dado ao exército fascista, que usava farda da mesma cor. Ao mesmo tempo, os jogadores faziam a famosa saudação nazi-fascista - o braço direito estendido para cima com a mão aberta - antes de cada partida, assim como foi em 1934.

 

Com camisas pretas, Seleção Italiana faz saudação nazi-fascista antes de partida da Copa de 1938 (Foto: Divulgação)

 

Na Alemanha, o sucesso no futebol não aconteceu durante o regime nazista. Especialmente por causa da decadência do futebol austríaco, após a morte do treinador Hugo Meisl, em 1937 - a Áustria foi anexada por Hitler em 1938. Crítico do regime, Matthias Sindelar se recusou a atuar pela seleção alemã unificada. Até hoje, sua morte por inalação de monóxido de carbono em 1939, em casa, gera dúvidas. O relatório oficial diz que o ex-jogador e sua namorada cometeram suicídio, "por causa da pressão desumana que Sindelar sofreu da Gestapo" - a polícia secreta da Alemanha Nazista. 

 

LA FÚRIA ESPANHOLA 

A alcunha "Fúria" nasceu na Seleção Espanhola de futebol em 1920, quando o termo foi empregado pelas imprensas belga e holandesa para denominar a equipe que venceu a disputa na Olimpíada de Antuérpia, naquele mesmo ano - à época, os campeões recebiam medalhas de prata, já que não havia a divisão atual, que inclui ouro e bronze.

 

"Ao fazer isso, eles estão mobilizando um movimento histórico de 1576, em que os soldados espanhóis, de Felipe II, invadem Antuérpia e promovem um massacre e um saque dentro da cidade. A consequência disso é que o termo 'fúria' passou a ser empregado para se designar o que é ser espanhol: uma pessoa bruta, impetuosa, e em alguns momentos descrita como bárbara e selvagem. E isso vai entrar também no futebol, para descrever o futebol praticado pela Espanha nesse período", conta Victor Figols, editor do site Ludopédio e doutorando em história na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

 

A origem do termo, segundo ele, é basca. O Athletic Bilbao, principal clube do País Basco e, naquela época, da Espanha, tinha um estilo de jogo que se assemelhava ao futebol que era praticado na Inglaterra. Apostava muito na virilidade, nas bolas longas e na capacidade física e individual dos próprios jogadores. No entanto, o termo foi apropriado por Franco, ditador que assumiu o controle do país após a vitória da Falange Espanhola na Guerra Civil, em 1939.

 

Por causa do nacionalismo espanhol exacerbado e do regime franquista, a "Fúria Roja (vermelha)" virou apenas "La Fúria". A palavra "Rojo", segundo Victor, foi muito usada à época "de forma pejorativa para designar os comunistas". O historiador lembra o episódio da Eurocopa de 1964, quando a Espanha sagrou-se campeã utilizando uniformes azuis, cor que simbolizava a Falange Espanhola.

 

Seleção Espanhola usou camisas azuis na Euro 1964 (Foto: Reprodução / Twitter - @OldFootballPhotos)

 

Contudo, a seleção não foi utilizada com tanto vigor pelo regime franquista para fazer propaganda, porque o desempenho da Espanha em mundiais não agradou. "O regime vai proibir a presença de jogadores estrangeiros na Espanha. Isso vai refletir de certa forma na competitividade do Campeonato Espanhol, mas também da própria seleção no cenário europeu e na Copa do Mundo. Até a década de 60 a gente ainda vai ter alguns estrangeiros naturalizados na seleção, mas a partir da metade em diante eles não jogam mais pela seleção, então temos um enfraquecimento", diz Figols.

 

Por outro lado, o Real Madrid, clube comandado por Santiago Bernabéu, amigo pessoal de Franco, representaria o futebol espanhol em toda a Europa. Com cinco títulos seguidos da recém criada Taça dos Campeões da Europa - atual Liga dos Campeões -, entre 1956 e 1960, o time comandado pelo argentino naturalizado espanhol Di Stéfano e pelo húngaro Ferenc Púskas dominou o continente.

 

Púskas, ao lado de seu compatriota, Lásló Kubala, que jogava no Barcelona, foi utilizado pelo regime para fazer propaganda. Isso porque muitos jogadores e técnicos húngaros fugiram do país, dominado pelo regime comunista soviético. "Eles fugiram do regime comunista por dois motivos: não eram profissionais, e buscavam profissionalismo, e no caso de alguns, principalmente de Kubala, fugiram do regime militar obrigatório. É curioso que o próprio regime [franquista] vai usar esses jogadores para mostrar que o comunismo não deu certo, que é uma coisa ruim. (...) Em alguns momentos, você vai ver manifestações desses atletas favoráveis ao franquismo", afirma Victor.

 

BORIS ARKADIEV 

"Axel Vartanyan, reconhecido historiador do futebol soviético, acredita até mesmo que Arkadiev tenha sido o primeiro homem a usar uma linha de quatro jogadores na defesa", lembra Jonathan Wilson, em "A Pirâmide Invertida - A história da tática no futebol". De fato, o treinador Boris Arkadiev foi responsável por revolucionar o futebol soviético, a partir de um conceito que repetimos muito hoje em dia: organização tática.

 

No Dynamo Moscow, o russo implementou um sistema que ficou conhecido pelos jornais locais como "desordem organizada". Com a bola e o estilo coletivo - exaltado como característica comunista do futebol - os jogadores soviéticos, sem grandes estrelas, se movimentavam incessantemente no ataque, buscando gerar espaços para fazer gols. O método foi o precursor para o histórico "Carrossel Holandês", de Rinus Michels, em 1974, e até para o Barcelona bicampeão mundial de Pep Guardiola, já no Século XXI.

 

Boris Arkadiev, treinador da URSS durante a Olimpíada de 1952 (Foto: Reprodução / footballfacts.ru)

 

No entanto, o fracasso da União Soviética (URSS) na Olimpíada de Helsinque-1952, com a eliminação na primeira fase para a Iugoslávia, irritou o ditador Josef Stalin. Ele promoveu a desfiliação do CSDA Moscow, time à época treinado por Arkadiev, da liga soviética, e retirou o título de mestre dos esportes da URSS do treinador. A propaganda comunista, como aconteceu com a Alemanha Nazista, não pôde usar o futebol da forma que desejava. 

 

PRA FRENTE, BRASIL

Diz a história que o treinador João Saldanha, membro do Partido Comunista, deixou a Seleção Brasileira meses antes do início da Copa do Mundo de 1970, no México, durante a ditadura militar no Brasil. Não há consenso sobre o real motivo da saída do comandante, substituído por Mário Zagallo, mas fato é que, das 17 partidas que disputou, a equipe de Saldanha venceu 14, empatou uma e perdeu apenas duas.

 

"A documentação de arquivos a que tive acesso mostra que a CBD [antiga CBF] e a ditadura sabiam da trajetória política de Saldanha e, ainda assim, ele foi escolhido como técnico. Até onde eu sei, não havia um embate direto entre Médici ['presidente' do Brasil à época] e Saldanha. A famosa frase 'eu não escalo ministério e o senhor não escala a minha seleção' precisa ser contextualizada. Ela não foi dita em uma conversa entre eles, ou em tom de discussão. Saldanha colecionou questões antes da demissão. Mas, claramente, o perfil e a trajetória de Saldanha o colocavam como oposição aberta ao regime", lembra a professora de história da Universidade Federal Fluminense (UFF), Lívia Magalhães.

 

Em sua tese de doutorado, "Sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina", a historiadora lembra que a mídia brasileira foi responsável por fazer diversas críticas à Seleção. "No início de 1970, com as tensões que apareciam entre João Saldanha e a CBD, a mídia brasileira viu no conflito um tema de grande interesse e passou a ser um ator a mais na chamada por eles mesmos 'crise do futebol brasileiro'. A situação da Seleção naquele momento levou o regime, através do ministro da Educação e Desportos, Jarbas Passarinho, a convocar o presidente da CBD, João Havelange, para que explicasse o escarcéu que era feito na mídia. Nas palavras do ministro, [era] mais uma vez a ideia da Copa como um projeto nacional, que dependia de todos para que a Seleção conseguisse o caminho da vitória", escreveu Lívia.

 

Para Max Rocha, editor do site Ludopédio e doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), é preciso lembrar que a conexão do desempenho da Seleção com a política não é exclusividade do período militar. "Isso se dá desde o processo de popularização do futebol. Começa nos anos 1910 e 1920, e ganha fôlego nos anos 1930. Tanto é que Getúlio Vargas realizava os comícios do Dia do Trabalho em São Januário, estádio do Vasco, e na inauguração do Pacaembu, em 1940, ele faz essa associação futebol-política no discurso. Isso acontece em todos os momentos que o Brasil tem um bom desempenho dali para frente. As forças políticas que estão no poder tendem a disputar uma conexão. Em 94 também, não podemos esquecer do Romário chegando com a bandeira do Brasil, em referência ao Senna, e do Vampeta dando cambalhotas na rampa do Palácio do Planalto", afirma.

 

Durante a Copa de 1970, vencida pela Seleção Brasileira, com craques como Pelé, Jairzinho, Tostão e Gerson, a ditadura utilizou a música e lema "Pra frente, Brasil" para embalar o tricampeonato. "[O governo Médici] Procura essa aproximação e associação. A gente tem um processo de militarização do quadro da CBD, antiga CBF. Isso passa pelo quadro administrativo e até pela dinâmica de treinamentos. Essa militarização acontece tanto de forma institucional quanto esportiva. Passa por um processo de disciplinarização dos comportamentos dos jogadores. Alfonsinho acho que é o maior ícone da época, de se recusar, sob comando do próprio Zagallo, a cortar o cabelo e remover a barba. Ele sofreu consequências. Reinaldo, do Atlético-MG, é um bom exemplo de pessoa que sofreu retaliação por seu posicionamento político", conta Max.

 

O símbolo da conexão política-futebol durante a ditadura é o conformismo de Pelé, maior atleta de todos os tempos. Em 1972, em entrevista ao jornal urguaio La Opinión, o camisa 10 afirmou não haver ditadura no Brasil. "O Brasil é um país liberal, uma terra de felicidade. Somos um povo livre. Nossos dirigentes sabem o que é melhor para nós e nos governam com tolerância e patriotismo", cravou. Em 1974, por outro lado, o craque disse não ter ido à Copa por não corroborar com o regime.

 

Pelé levanta taça da Copa do Mundo ao lado de Médici (Foto: Roberto Stuckert / Folhapress)

 

"O que as pesquisas mais amplas sobre a ditadura mostram é que grande parte da sociedade brasileira não se entendia vivendo em uma ditadura, não entendia os efeitos mais amplos do regime em suas vidas. A memória posterior construída, principalmente nas décadas de 1980 e 1990, passou uma ideia de sociedade resistente, opositora. Mas não era isso, de fato. O que tampouco significa que eram apoiadores ou entusiastas do regime. Não podemos esquecer, por exemplo, o papel da censura na construção de um discurso de 'normalidade', naquele momento", opina Lívia Magalhães.

 

O "ponto de virada" dessa relação ocorre na Copa de 1982, quando o regime militar já estava em decadência. Embalada pelas recentes correntes de democracia, no futebol marcada principalmente pela Democracia Corinthiana, a Seleção, que contava com Sócrates, expoente do movimento, se tornou um dos símbolos de resistência à ditadura.

 

"Eu tenho a hipótese de que a Seleção serviu como uma possibilidade de se costurar um novo pacto social. Estávamos no final do período do regime militar, e até o momento o que me parece é que há uma unanimidade de discursos em relação à Seleção de 82. Temos o processo de construção de memória. Os maiores expoentes do jornalismo esportivo à época continuam na ativa, então são considerados senhores da memória, e disputam esse espaço de lembranças. Essa Seleção poderia ser um canal de reorganização da sociedade brasileira, que estava dilacerada pelo regime militar. Surgiria como a oportunidade de uma mistura de renascer do futebol que costuma ser chamado de futebol arte. Uma seleção que se remeteria a 1970, pelo seu talento individual, e ao mesmo tempo teria condições de fazer esse novo arranjo social, e isso passa inclusive pela reapropriação da bandeira nacional e das cores verde e amarelo", destaca Max Rocha.

 

No contexto atual, o processo acontece de forma inversa. O bolsonarismo se apropriou das cores verde e amarelo e da bandeira nacional. Nas últimas semanas, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro colocaram a hashtag #ForaTite em primeiro lugar nos Trending Topics do Twitter Brasil. Segundo o jornalista André Rizek, do grupo Globo, o então presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Rogério Caboclo, teria prometido a Bolsonaro que demitiria o técnico Tite e colocaria Renato Gaúcho, treinador alinhado com a ideologia do atual governo, no cargo. Caboclo foi afastado do cargo, por acusações de assédio sexual e moral feitas por uma funcionária da entidade , e negou a informação de Rizek. O presidente em exercício da CBF, Coronel Nunes, garantiu Tite no cargo.

 

Parecia a chance perfeita para os jogadores se posicionarem politicamente com a camisa da Seleção Brasileira, mas procuraram não o fazer, mais uma vez.


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