
Um relatório organizado por entidades ligadas aos direitos humanos aponta uma escalada de retrocessos na promoção e na manutenção de políticas públicas voltadas para a população LGBTQIA+, às mulheres e no âmbito das agendas sobre drogas ao longo dos últimos quatro anos (2018-2021).
Lançado em julho deste ano, o documento marca a criação da Escola Nacional de Gênero e Sexualidade (Gêneros) e acompanha, através de uma linha do tempo, os principais acontecimentos dos poderes Legislativo e Executivo relacionados com o tema.
A ferramenta está estabelecida em uma plataforma virtual e nasceu da parceria entre Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD), Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), e a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA).
Segundo a porta-voz do projeto, a advogada e pesquisadora Dandara Rudsan, a escola é a primeira grande mola propulsora da plataforma e deve funcionar como um repositório de informações e dados que possam ser acessados, principalmente, por lideranças de movimentos sociais, ativistas e pela sociedade civil.
O intuito, alega ela, é o de combater a fragilização das políticas públicas e oferecer um subsídio teórico para que possam fortalecer o discurso contra a narrativa "antigênero".
O documento elenca alguns avanços, adquiridos no início dos anos 2000, a exemplo da Lei Maria da Penha, das mudanças na política sobre drogas e da implementação de um novo modelo assistencial em saúde mental, que passa a incorporar a perspectiva da reforma psiquiátrica e da desmanicomialização.
Dandara Rudsan | Foto: Reprodução / Arquivo pessoal
Dandara explica que, durante os anos acompanhados pelo relatório, foram observados retrocessos significativos principalmente em leis que garantem direitos às pessoas LGBTQIA+, seja no aspecto do acesso à saúde ou na assistência social, dois pontos cruciais no debate travado pelas entidades envolvidas.
"Nós temos, por exemplo, um projeto de lei que versa exclusivamente para que, no sistema de saúde, pessoas trans sejam tratadas pelo nome de nascimento. Qual é o objetivo de uma proposta dessas se não impedir que aquela população mais marginalizada e vulnerabilizada tenha possa ter acesso à saúde?", questionou Rudsan.
A preocupação de ativistas em evitar retrocessos tem feito com que não se consiga avançar na proposição de outras pautas. "Não está dando tempo de nós conseguirmos respirar para conseguir pensar em lutar por novos direitos", resume a porta-voz, que também é membra da Iniciativa Negra Por Uma Nova Política Sobre Drogas.
Foi evidenciador, descreve a entrevistada, a constatação de que "estamos regredindo nas políticas públicas voltadas para população que faz uso problemático de drogas", uma vez que os projetos de lei observados têm "um caráter conservador e punitivista", principalmente no que diz respeito a contratação e fortalecimento das chamadas "comunidades terapêuticas".
Ela afirma que nessas instituições, controladas em grande parte por grupos neopentencostais, é colocado em prática um método de características "manicomiais", que se afasta da abordagem do uso de drogas como uma questão de saúde pública.
Mais de 40 PLs contra pautas progressistas foram mapeados | Foto: Reprodução / USP
Ao todo, 13 legendas - tanto de esquerda quanto de direita - colocaram em pauta projetos considerados negativos. Conforme traz o relatório, o União Brasil (fusão do PSL e DEM) encabeça o ranking, com 10 projetos. Logo depois, em segundo lugar, está o PSC (Partido Social Cristão), com 8 proposições.
Em terceiro lugar figura o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) e o Republicanos, com 5 projetos cada. Em quarto lugar estão o PSB (Partido Socialista Brasileiro), o Solidariedade, o Avante e o PSD (Partido Social Democrático), com 2 proposituras cada. E, por último, com 1 propositura cada, estão o Podemos, Progressistas, PMN (Partido da Mobilização Nacional), PHS (Partido Humanista da Solidariedade) e PTB (Partido Trabalhista Brasileiro).
Das proposituras positivas, analisando toda pauta de gêneros, os partidos que mais têm proposituras são o PT (Partido dos Trabalhadores), em primeiro lugar, com 50, seguido do PSDB, com 25, e PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), com 23. O União Brasil tem 16 projetos; PDT (Partido Democrático Trabalhista), 11.
Com 10 projetos positivos estão PCdoB (Partido Comunista do Brasil) e MDB (Movimento Democrático Brasileiro), seguidos do PSB, com 8, e Podemos, com 6. O PSD tem 5 projetos; o PL, 4; Progressista, 3; e com 1, cada, estão o Republicano, PROS (Partido Republicano da Ordem Social), PV (Partido Verde), PTB, Rede Sustentabilidade e PSC.
Segundo o relatório, o Estado brasileiro, focado em uma lógica diminuta, tem enxugado as ações que tenham a finalidade de proteção e promoção do bem-estar da população.
Relatório elenca declarações que influenciaram retrocessos | Foto: Valter Campanato/ABr
"Os documentos analisados nos mostram a coalizão de uma robusta agenda antigênero, antidireitos, antiLGBTQIA+, apresentando retrocessos na saúde, redes de cuidados a pessoas que usam drogas, política nacional de HIV/AIDS, programas de educação em saúde e prevenção e o desmonte de espaços de participação na elaboração de políticas públicas como os conselhos nacionais", diz um trecho do texto.
Além disso, os atos do governo demonstram uma aproximação de um projeto conservador, baseado no fundamentalismo evangélico, na militarização e na defesa de medidas como o porte de armas, da censura a editais de cultura que apresentem uma agenda de gênero e sexualidade, e no desmonte de mecanismos de combate à tortura.
As publicações nas redes sociais dos representantes e do próprio chefe do Planalto ajudaram, no entendimento dos especialistas, a disseminar "um espaço confortável para a ampliação do discurso de ódio contra pessoas LGBTQIA+, e mulheres", tendo potencializado a conversão de discursos violentos em práticas.
Entretanto, como admite Dandara, essas mudanças não devem acontecer de forma imediata, mesmo em um ano eleitoral. "Eu acredito que a gente pode até conseguir frear esse caminho de regresso de direitos, mas para a gente conseguir o que já perdeu ainda vai demorar muito tempo. Vamos precisar de muito mais que um mandato progressista de quatro anos", apontou.
Na interpretação da pesquisadora, os dados qualificados que estão sendo disponibilizados agora podem servir não somente de parâmetro para a articulação dessas medidas pelo poder público como também para uma sensibilização da sociedade sobre o tema.